01/10/2025
30/09/2025
01/09/2025
CARMÉLIA MARIA DE SOUZA: ESTA ILHA É UMA DELÍCIA (RENATA BOMFIM)
No Programa Biografia, da TV- ALES, Milson Henriques, que foi um amigo muito próximo a Carmélia, afirmou que a cronista, quando criou a frase “Essa ilha é uma delícia”, o slogan poderia, à primeira vista, “parecer um elogio”, mas que estava “repleto de ironia”, e, na realidade, a frase queria dizer que, em Vitória, “tudo é proibido, tudo é provinciano, tudo não pode”. Ele acrescentou, ainda, que a despeito da ironia, nada impediu Carmélia de amar verdadeiramente a cidade de Vitória e de defendê-la nas suas crônicas.
Com relação à criação do slogan, “Esta Ilha é uma delícia”, o jornalista Pedro Maia declarou que é de autoria de Acyr Monteiro. Quem traz esse dado é José Irmo Gonring. Segundo Maia, Carmélia o teria adotado para a sua coluna: “Carmélia veio de Barbacena, onde tinha uma coluna chamada Os Pardais, para fazer coluna social no lugar do Hélio Dórea, que tinha ido para o jornal A Gazeta. A ideia de colocar na coluna o nome Essa Ilha É Uma Delícia foi do Acyr Monteiro, que realmente gostava muito de Vitória. Carmélia queria colocar na coluna o nome Os Pardais, mas Acyr achava muito provinciano”. [...] Ela escreveu durante dez anos a coluna”.
A despeito de quem foi o criador do slogan, Glecy Coutinho destacou “Olha, Carmélia foi a pessoa que, eu acho, mais amou Vitória! Ela escrevia muito sobre Vitória, muito mesmo, e ela defendia Vitória, assim, viu, de unhas e dentes”. Esse amor da cronista pela cidade atravessa todo o livro Vento Sul. O texto “Com vistas ao cronista”42 fala sobre uma viagem que Carmélia fez ao Rio de Janeiro. Nele, a cronista declara que ficou feliz ao encontrar a Revista Vida Capixaba em uma banca, entretanto, ao ler, observou que o cronista Eugênio Sette, seu amigo, “espinafrava” a cidade: “Reconheço que nem sempre é possível a gente se lembrar que roupa suja deve ser lavada em casa”. Carmélia declara ter percebido um certo prazer, por parte do escritor, em “contar para os quatro ventos os pecados da Ilha”, uma intimidade que, para ela, era “sagrada”. Então, de forma humorada, passou a descrever o absurdo de alguém dizer que “os nossos telefones são uma droga”, que “as senhoras da Tradicional Família Capixaba [TFC] são fofoqueiras”, que “quando chove, fica tudo alagado”, e pergunta ao Eugênio: “em que mundo você estava quando inventou essas bobagens?”43 Em diversas crônicas é possível observar que há momentos em que Carmélia se torna porta voz da Ilha de Vitória: “A Ilha está pedindo para que vocês a deixem crescer”, “a Ilha quer saber se lá fora o seu nome é pronunciado com admiração e respeito”, e há outros, nos quais ela se funde à cidade: “Eu sou a Rua Duque de Caxias”. Carmélia afirmou que “gostava do jeito gozador com que os capixabas encaram as coisas da vida” e, no mesmo texto, ela pede ao Eugênio que, quando for escrever, “pense nas tardes de maio, [...], nas noites de serestas, nas estrelas da madrugada {...] e depois escreva uma crônica cheia de doçura, lembrando dela, “alguém que sempre entendeu (com amor e ironia) que esta Ilha é uma delícia”, especialmente por “abrigar os amores que a gente tem”.
Na parte dois de Vento Sul: “Cartas do meu redemoinho”, Carmélia se referirá a Vitória como “preguiçosa e bonita”, uma cidade que parece ter sido feita para abrigar as pessoas de boa fé e os homens de boa vontade”. Nesse texto, o que à primeira vista soa como sarcástico, vai sendo justificado poeticamente e vemos surgir aos olhos uma cidade humanizada “onde o milagre da poesia vai transformando todas as estrelas em perdão, a fim que se perdoem todas as mágoas de amor”46. Outro exemplo interessante que fala sobre os capixabas está na crônica “O deletério do povo capixaba”, onde a cronista diz: “confesso que não encontrei outra [palavra] mais expressiva para dizer o que penso do honrado povo capixaba [...]. É, decididamente, um povo deletério, este”. O povo mais deletério do mundo, talvez”. No texto, a escritora sai em defesa do amigo Marien Calixte que buscava empreender na gestão municipal de Vitória e estava recebendo muitas críticas. Carmélia acrescenta: “é bastante alguém pensar em fazer alguma coisa que preste nessa Ilha (ô Ilha!), para que os chamados “pés-frios” comecem logo a engrossar. Ao invés de darem o necessário incentivo [...]. E vão em frente os deletérios do inferno, apostando a própria mãe como ninguém será capaz de fazer coisa nenhuma. É uma desgraça, enfim”47. Carmélia não tinha papas na língua e fica claro que ela se posicionava com relação aos acontecimentos e às figuras públicas da cidade. A cronista, como bem disse Santos Neves, se dava bem com pessoas de diferentes grupos sociais, possuía amigos da classe trabalhadora e da alta sociedade e mantinha o hábito de passar temporadas nas casas desses variados amigos, como, por exemplo, na da colunista social Maria Nilce. Carmélia tinha consciência da potência das palavras, e de que a forma como representamos algo ou alguém, revela ou confere valor e grau de importância ao representado.
Renata Bomfim.
CARMÉLIA MARIA DE SOUZA: CRITICIDADE, POLÍTICA E RELIGIOSIDADE (RENATA BOMFIM)
CARMÉLIA MARIA DE SOUZA: A MUSA DA FOSSA (Renata Bomfim - parte 4)
A MULHER QUE DESCOBRIU A PRIMAVERA: CARMÉLIA MARIA DE SOUZA, FORÇA QUE NASCE DA TERNURA ( Renata Bomfim - parte 3)
A inserção de Carmélia no mundo da crônica aconteceu no tempo que ela ainda era estudante e escrevia para a revista Comandos, do Colégio Estadual do Espírito Santo. É de 1954 a crônica “La vida es sueño”, que diz: “estoy segura que yo no soy la única persona a soñar en el mundo”. A primeira crônica como profissional, intitulada “O lotação, a gorda e eu”, Carmélia publicou em 1958, na Revista Vida Capixaba. Posteriormente, a cronista trabalhou nos principais jornais da capital: Sete Dias, O Diário, A Tribuna, A Gazeta, O Debate e Jornal da Cidade. Após anos de produção, na década de 1980, parte do acervo que continha seus escritos foi destruído em um incêndio, eram crônicas publicadas nos jornais A Tribuna e O Diário.
Conforme relatamos anteriormente, Carmélia tinha um amor declarado pelo ofício de escritora. Apaixonada pela palavra, ela produzia com paixão e os seus textos tinham uma forte carga de lirismo: “Há uma necessidade em mim de dizer as palavras que ainda não foram ditas”17. A escritora também escreveu poemas, em guardanapos, que ofertava aos amigos, nas noites, em bares como o Britz e o Shakesbeer. A leitura de Vento Sul indica que Carmélia não se fechou na crônica, há na obra, também, poesia. Infelizmente, não temos ideia do que o fogo consumiu do seu trabalho e nem o que esse material abriria de possibilidade para a pesquisa. A entrega genuína à produção literária, alinhada com os valores que acreditou e defendeu, fez com que a cronista marcasse uma época e se tornasse a porta-voz do espírito de contestação dos anos 60 e da desilusão dos anos 70.
As luzes que permitiram que a escrita de autoria feminina fosse vista com mais interesse e se tornasse linha de pesquisa em variados centros acadêmicos, começaram a brilhar a partir da década de 1970, especialmente instigada pela crítica feminista. Foi então que passou a acontecer um revisionismo crítico da produção das mulheres de diferentes épocas, o que contribuiu para a territorialização do espaço da escrita em ofícios tradicionalmente tomados como sendo “de alçada masculina” como o jornalismo.
A crônica, gênero híbrido que transita entre o jornalístico e o literário, nasceu irremediavelmente atrelado ao jornal. A palavra crônica, derivada do grego Khronos, mostra a associação do gênero ao tempo. A escrita de Carmélia possibilita um olhar, — que deve ser feito à contrapelo —, para a cidade e a sociedade do seu tempo e, se levarmos em conta que o jornal é um suporte temerário, — pois as notícias são atualizadas e o jornal do dia anterior acaba fadado ao esquecimento—, podemos dizer que Carmélia é uma sobrevivente.
A primeira crônica “oficial” de Carmélia permite entre ver o olhar sensível da escritora, capaz de enxergar poesia em uma cena corriqueira da cidade. Essa crônica também é uma mostra da poeticidade de sua prosa. A escolha do lotação, ou seja, do ônibus, como cenário de observação para a escrita, indica a proximidade da cronista com o universo do trabalho, do público e do coletivo. O texto expõe o desconforto dos passageiros “que se comprimiam” dentro do coletivo, e a atitude de uma mulher que, sentada, reclamava do aperto com um outro passageiro que estava de pé. Esse foi o ponto de partida da cronista para variadas reflexões. A descrição da personagem como “gorda e feia” revela uma antipatia da personagem por parte da narradora que pode ter sido despertada pela falação da mulher e agravada pelo cansaço, pois, Carmélia confidencia ao leitor que teve um “dia horrível”. A narradora observou que, logo, todos os passageiros passaram a reclamar do lotação. Segundo Carmélia, além de reclama rem da situação momentânea, passaram a falar mal “de todos os lotações do mundo”. No decorrer da crônica podemos ver que esse mal-estar, aos poucos, foi cedendo ao sentimento de ternura e gratidão. A cena despertou em Carmélia o que ela definiu como uma “ternura toda esquisita” pelos lotações da cidade e pelo motorista “carrancudo” e de “mãos caleja das” que o dirigia. Na narrativa, observamos que a cronista se sensibilizou com a situação do trabalhador e sentiu gratidão pelo “cacareco” que, gentilmente, ao final do dia, a deixava na esquina de casa. Na parte final da crônica, bastante poética, essa viagem de ônibus se torna uma metáfora da vida, e Carmélia diz que esperava um dia, ao vir “os destroços” do velho lotação, em “algum canto da vida”, e lembrar dos tempos em que “rabiscava crônicas como esta, na esperança de que [lhe estivesse] reservado um lugar ao sol”. Um texto emocionante que mostra o desejo de uma jovem escritora de 22 anos, de encontrar espaço como profissional e alcançar o reconhecimento pelo seu trabalho.
Renata Bomfim.
CARMÉLIA MARIA DE SOUZA: DESESPERADA E LÍRICA ( Renata Bomfim - parte 2)
CARMÉLIA MARIA DE SOUZA: DESESPERADA E LÍRICA ( Renata Bomfim - parte1)
“Nunca foi tão preciso dar amor e amar. E nunca foi tão difícil fazer com que os homens acreditem nisso” (Carmélia Maria de Souza)
Carmélia Maria de Souza fez da crônica um espaço fértil para a produção literária. A “Cronista do povo”, como ela se definia e gostava de ser referenciada, foi uma personae dramatis, e criou performances que lhe permitiram sondar a própria identidade e se desdobrar em Félia, Magnólia Cardin, Magnolérrima. Reinaldo Santos Neves declarou ser difícil, talvez impossível definir Carmélia, mas que ela foi, certamente, “alguém que abriu caminhos – principalmente para as mulheres de Vitória”, e isso, “sem lágrimas nem dor. A não ser para ela mesma”. Sendo assim, passados cinquenta anos de sua viagem para “as esquinas dos astros”, buscamos o seu rosto na sua obra e nas palavras daqueles que a conheceram e tiveram a alegria de desfrutar de sua companhia. Vento Sul deixa evidente o amor de Carmélia pela escrita: “E escrever, senhoras e senhores, ainda é a única coisa que consigo fazer muito bem neste mundo de meu Deus, — modéstia à parte. E isso eu aprendi a fazer assim mesmo, por minha conta e risco, sem que ninguém me ensinasse”. A cronista produziu no que chamou sua “tendinha de trabalho”, — onde “nos respeitam e às nossas ideias” —, o que denominou sua “vida operária, responsável por alguma parte desta engrenagem maravilhosa que é uma oficina de jornal”.
A relevância de Carmélia no cenário cultural e jornalístico é imensa, conforme destacou Francisco Aurélio Ri beiro, ela “foi a responsável por popularizar a crônica escrita por mulheres no Espírito Santo”6. Amylton de Almeida, em uma reportagem no jornal A Gazeta, declarou que devia a Carmélia “a primeira oportunidade na imprensa, em 1966, quando essa profissão dificultava o ingresso de certas pessoas”. Falamos aqui de um tempo de profundas mudanças no jornalismo local “extremamente conservador”. Marien Calixte7, personagem de relevo na história no jornalismo capixaba, relatou que a discriminação fazia com que “pessoas como Amylton de Almeida e Milson Henriques, que eram tidos como homossexuais, até por causa da sua própria fisiologia social, quer dizer, eles eram boêmios, pessoas metidas em teatro, literatura, etc.”, fossem estranhadas nas redações. Calixte destacou, ainda, que “a discriminação se estendia também para o gênero feminino”, e que perguntavam como “esse tipo de gente” havia conquistado espaço profissional. Carmélia escreveu na crônica “Notícias sem tempo da minha cidade”8: “Quem não quiser concordar, que se dane, [...] quem não estiver a fim de sintonizar direitinho com o que se faz aqui, tenha a bondade de não ficar pichando a gente pelas costas não. [...] Acabamos de nascer para esta cidade que é um mundo”.
Os anos de 1960 produziram grandes transformações sociais, conforme destacou Francisco Aurelio Ribeiro: “o acirramento da luta feminista com a criação do Women’s Lib, nos EUA, e do Movimento de Libertação das Mulheres, na França, em 1968. Dentre as reivindicações do feminismo estavam: direito ao aborto, contracepção livre e gratuita, igualdade de salários para o mesmo trabalho, defesa e informação das mulheres sobre seus direitos, luta contra a opressão familiar, que limitava o papel da mulher ao de esposa e mãe. No Brasil, o movimento foi cerceado pela ditadura militar, que impôs a censura e a perseguição aos intelectuais e políticos”. Em Vento Sul, variadas passagens mostram Carmélia se in surgindo contra o provincialismo da ilha e afirmando que, se há nela alguma pretensão, é a de ser “justa, natural e única”, em contraposição aos “enfeitados e esnobadinhos”, o que considerou um “hábito tradicional de muita gente” na ilha de Vitória”10. Carmélia não ligava para falatórios, foi uma mulher simples, que valorizou a essência, pouco se importando com as aparências, e é sabido que a autenticidade cobra o seu preço.
Variados tipos de violência ameaçam as mulheres, in diferentes a endereço, raça, cor, classe social, escolaridade, profissão. Entretanto, sabemos também que os impactos dessas violências diferem com relação as suas vítimas, a partir de marcadores sociais como gênero, raça e classe. Carmélia carregou marcadores de diferença significativos, — mulher, negra, pobre e LGBTQIA+. Para Kátia Fialho, a cronista “imprimiu em sua escrita uma “ruidosa” (no melhor dos senti dos) forma de (r)existência. Do lugar de fala que ocupou no mundo tendo um corpo negro, gordo, totalmente fora dos padrões determinados por uma sociedade altamente conservadora – que ela apelidou de TFC (Tradicional Família Capixaba), ela não precisou empunhar e tremular uma bandeira de luta por respeito, pois a sua própria presença no universo do jornalismo, da boemia e da escrita, de forma precursora e altamente irônica, provocativa e ‘subversiva’ a destacavam como uma mulher à frente do seu tempo, que carregava em seu modo tão peculiar de viver a essência da diversidade”. Prova dessa coragem é que Carmélia viveu desafiando costumes, ela foi uma das poucas mulheres em Vitória a usar calça comprida e, a esse respeito, a cronista declarou: “Não troco o conforto das minhas calças compridas e surradas por nada deste mundo”11. Reinaldo Santos Neves perguntou em “Muito além do Milk Shake”12, “Quem foi Carmélia Maria de Souza? O escritor, que conviveu com Carmélia, traz à luz uma imagem de mulher afastada de “joias, adereços, maquiagem”, “com jeito de homem, com mania de usar sempre calça comprida e de viver sempre acompanhada por homens, sendo que, nos seus últimos dias, tinha como companheira dos últimos anos ‘a famosa bengala’ e, pontual, usava um relógio de pulso para não se atrasar nos compromissos. Ambição? Nenhuma”. Carmélia não se deixou definir como “inferior” e caminhou com altivez na contramão do ideário feminino de sua época, respondendo as asperezas da vida com as ar mas de que dispunha: HUMOR E IRONIA. Carmélia escreveu: “Descobri que sou bárbara, dona de um estilo verdadeiramente universal, preciso urgentemente me mandar para Guanabara, pois Vitória não está à altura de receber minha genialidade, nem por aqui haveria horizontes dignos e devidamente alargados onde eu pudesse caber. A mim me cabe, portanto, dar uma banana para todos vocês e me mandar de mala e cuia para o Rio de Janeiro. Lá eu não terei a menor dificuldade em desbancar o Rubem Braga, nem em botar no maior chinelo o Carlinhos de Oliveira”13. Capixabas entenderão! A cronista conseguiu desvelar de forma irônica os valores da sociedade espírito-santense, desafiando a ideologia dominante e, mesmo que o slogan “Esta ilha é uma delícia”, popularizado por ela, esteja imantado de ironia, a cronista colocou o seu território, — a ilha de Vitória — no centro do [seu] mundo, como um lugar singular e único.
Renata Bomfim
20/08/2025
A alegria de inventar histórias reunindo cenas da cidade (Renata Bomfim)
11/08/2025
CARMÉLIA MARIA DE SOUZA: DESESPERADA E LÍRICA (Renata Bomfim)
“Nunca foi tão preciso dar amor e amar. E nunca foi tão difícil fazer com que os homens acreditem nisso” (Carmélia Maria de Souza).
Carmélia Maria de Souza fez da crônica um espaço fértil para a produção literária. A “Cronista do povo”, como ela se definia e gostava de ser referenciada, foi uma personae dramatis, e criou performances que lhe permitiram sondar a própria identidade e se desdobrar em Félia, Magnólia Cardin, Magnolérrima. Reinaldo Santos Neves declarou ser difícil, talvez impossível definir Carmélia, mas que ela foi, certamente, “alguém que abriu caminhos – principalmente para as mulheres de Vitória”, e isso, “sem lágrimas nem dor. A não ser para ela mesma”. Sendo assim, passados cinquenta anos de sua viagem para “as esquinas dos astros”, buscamos o seu rosto na sua obra e nas palavras daqueles que a conheceram e tiveram a alegria de desfrutar de sua companhia.
Vento Sul deixa evidente o amor de Carmélia pela escrita: “E escrever, senhoras e senhores, ainda é a única coisa que consigo fazer muito bem neste mundo de meu Deus, — modéstia à parte. E isso eu aprendi a fazer assim mesmo, por minha conta e risco, sem que ninguém me ensinasse”. A cronista produziu no que chamou sua “tendinha de trabalho”, — onde “nos respeitam e às nossas ideias” —, o que denominou sua “vida operária, responsável por alguma parte desta engrenagem maravilhosa que é uma oficina de jornal”. A relevância de Carmélia no cenário cultural e jornalístico é imensa, conforme destacou Francisco Aurélio Ribeiro, ela “foi a responsável por popularizar a crônica escrita por mulheres no Espírito Santo”. Amylton de Almeida, em uma reportagem no jornal A Gazeta, declarou que devia a Carmélia “a primeira oportunidade na imprensa, em 1966, quando essa profissão dificultava o ingresso de certas pessoas”. Falamos aqui de um tempo de profundas mudanças no jornalismo local “extremamente conservador”. Marien Calixte, personagem de relevo na história no jornalismo capixaba, relatou que a discriminação fazia com que “pessoas como Amylton de Almeida e Milson Henriques, que eram tidos como homossexuais, até por causa da sua própria fisiologia social, quer dizer, eles eram boêmios, pessoas metidas em teatro, literatura, etc.”, fossem estranhadas nas redações. Calixte destacou, ainda, que “a discriminação se estendia também para o gênero feminino”, e que perguntavam como “esse tipo de gente” havia conquistado espaço profissional.
Carmélia escreveu na crônica “Notícias sem tempo da minha cidade”: “Quem não quiser concordar, que se dane, [...] quem não estiver a fim de sintonizar direitinho com o que se faz aqui, tenha a bondade de não ficar pichando a gente pelas costas não. [...] Acabamos de nascer para esta cidade que é um mundo”. Os anos de 1960 produziram grandes transformações sociais, conforme destacou Francisco Aurélio Ribeiro: “o acirramento da luta feminista com a criação do Women’s Lib, nos EUA, e do Movimento de Libertação das Mulheres, na França, em 1968. Dentre as reivindicações do feminismo estavam: direito ao aborto, contracepção livre e gratuita, igualdade de salários para o mesmo trabalho, defesa e informação das mulheres sobre seus direitos, luta contra a opressão familiar, que limitava o papel da mulher ao de esposa e mãe. No Brasil, o movimento foi cerceado pela ditadura militar, que impôs a censura e a perseguição aos intelectuais e políticos”. Variadas passagens mostram Carmélia se insurgindo contra o provincialismo da ilha e afirmando que, se há nela alguma pretensão, é a de ser “justa, natural e única”, em contraposição aos “enfeitados e esnobadinhos”, o que considerou um “hábito tradicional de muita gente” na ilha de Vitória”. Carmélia não ligava para falatórios, foi uma mulher simples, que valorizou a essência, pouco se importando com as aparências, e é sabido que a autenticidade cobra o seu preço.
Variados tipos de violência ameaçam as mulheres, indiferentes a endereço, raça, cor, classe social, escolaridade, profissão. Entretanto, sabemos também que os impactos dessas violências diferem com relação as suas vítimas, a partir de marcadores sociais como gênero, raça e classe. Carmélia carregou marcadores de diferença significativos, — mulher, negra, pobre e LGBTQIA+. Para Kátia Fialho, a cronista “imprimiu em sua escrita uma “ruidosa” (no melhor dos senti dos) forma de (r)existência. Do lugar de fala que ocupou no mundo tendo um corpo negro, gordo, totalmente fora dos padrões determinados por uma sociedade altamente conservadora – que ela apelidou de TFC (Tradicional Família Capixaba), ela não precisou empunhar e tremular uma bandeira de luta por respeito, pois a sua própria presença no universo do jornalismo, da boemia e da escrita, de forma precursora e altamente irônica, provocativa e ‘subversiva’ a destacavam como uma mulher à frente do seu tempo, que carregava em seu modo tão peculiar de viver a essência da diversidade”.
Carmélia viveu desafiando costumes, ela foi uma das poucas mulheres em Vitória a usar calça comprida e, a esse respeito, a cronista declarou: “Não troco o conforto das minhas calças compridas e surradas por nada deste mundo”. Reinaldo Santos Neves perguntou em “Muito além do Milk Shake”, “Quem foi Carmélia Maria de Souza? O escritor, que conviveu com Carmélia, traz à luz uma imagem de mulher afastada de “joias, adereços, maquiagem”, “com jeito de homem, com mania de usar sempre calça comprida e de viver sempre acompanhada por homens, sendo que, nos seus últimos dias, tinha como companheira dos últimos anos ‘a famosa bengala’ e, pontual, usava um relógio de pulso para não se atrasar nos compromissos. Ambição? Nenhuma”. Carmélia não se deixou definir como “inferior” e caminhou com altivez na contramão do ideário feminino de sua época, respondendo as asperezas da vida com as armas de que dispunha: HUMOR E IRONIA.
A cronista escreveu: “Descobri que sou bárbara, dona de um estilo verdadeiramente universal, preciso urgentemente me mandar para Guanabara, pois Vitória não está à altura de receber minha genialidade, nem por aqui haveria horizontes dignos e devidamente alargados onde eu pudesse caber. A mim me cabe, portanto, dar uma banana para todos vocês e me mandar de mala e cuia para o Rio de Janeiro. Lá eu não terei a menor dificuldade em desbancar o Rubem Braga, nem em botar no maior chinelo o Carlinhos de Oliveira”. Capixabas entenderão!
A cronista conseguiu desvelar de forma irônica os valores da sociedade espírito-santense, desafiando a ideologia dominante e, mesmo que o slogan “Esta ilha é uma delícia”, popularizado por ela, esteja imantado de ironia, a cronista colocou o seu território, — a ilha de Vitória — no centro do [seu] mundo, como um lugar singular e único. A ironia é um recurso narrativo que requer cumplicidade entre o produtor e o destinatário da mensagem, é fácil constatar que entre Carmélia e seus leitores existia esse entendimento, o que mostra que a cronista conseguiu desenvolver um jeito próprio de se comunicar com o povo capixaba. Amylton de Almeida relatou que Carmélia não sobreviveu aos anos 70, mas que a cronista conheceu pela primeira vez o reconhecimento profissional, “trabalhando como redatora anônima na redação do jornal O Diário, depois de ter feito da crônica assinada o seu paraíso pessoal”. Esse relato dá a entender que a cronista experimentou um jeito diferente de se expressar, literariamente, escrevendo no anonimato. A história mostra que, em diferentes épocas, muitas mulheres ocultaram a autoria de seus textos ou escreveram sob a máscara do pseudônimo.
É sabido que a inserção da mulher no campo do discurso foi uma conquista nada fácil. Francisco Aurélio Ribeiro destaca: “esta deve ser vista juntamente com a marginalização a que foram submetidas pela sociedade machista e falocrata até muito recentemente, ao lado dos homossexuais, crianças, idosos e dos étnica e racialmente discriminados: negros, ciganos, curdos, dentre outros”. Os primeiros jornais do Espírito Santo não foram campos elísios para as vozes da alteridade, ao contrário, eles serviram a determinados grupos de homens da elite e albergaram ideologias conservadoras do período colonial, depois, continuaram atuando em prol das novas formas de poder. Francisco Aurélio Ribeiro aponta que, no século XX, houve um “reposicionamento da mulher na sociedade, a discussão do seu papel social, a sua profissionalização”, e destaca o pioneirismo de Haydée Nicolussi (1905- 1970) e Lídia Besouchet (1908-1989) como colunistas, em jornais e revistas da época.
Uma visada histórica mostra que o voto feminino foi constitucionalmente garantido em 1934. O Estado Novo (1937- 1945), estabelecido por Vargas através de um golpe de estado, dificultou muito os avanços da pauta feminista e, especialmente a vida das militantes, foram tempos de repressão. A redemocratização, em 1946, permitiu que às mulheres voltarem a se organizar em coletivos. No Espírito Santo, em 1949, foi fundada a Academia Feminina Espírito-santense de Letras (AFESL). Carmélia demonstrou interesse em ingressar na agremiação, mas a sua entrada não foi vista com bons olhos, possivelmente pela sua vida extemporânea. No ano de 1992, buscando retratar a injustiça, a instituição tornou-a patrona da cadeira de número 30. A primeira ocupante dessa cadeira foi Marzia Figueira (1938-2000), que segundo Ribeiro era “oriunda de família da elite” e teve grande destaque no cenário jornalístico capixaba, atuando por trinta anos. Embora ambas tenham produzido na mesma época e fossem humanistas, a escrita de Carmélia e de Marzia diferiam, pois, Carmélia escrevia ancorada pelos valores da contracultura, e Marzia produzia crônicas mais conservadoras.
Carmélia transitou com determinação nesse cenário jornalístico e literário, levando para o jornal, alguns deles de grande circulação, temas que encontraram ressonância em diferentes grupos, assim, com o passar dos anos, ela se consolidou como uma cronista implicada com a ótica da diferença. O jornalista Álvaro Silva relatou que “até o início da década de 1970, não existia imprensa profissional, eram pessoas que trabalhavam nas redações de jornal depois do expediente, era médico, professor, funcionário público, e quando ele terminava o expediente ia para jornal ganhar mais um dinheirinho. Segundo Silva, Carmélia não tinha formação [acadêmica] como jornalista, tinha formação como gente, ela foi uma intelectual pura, que viveu a vida como ela deveria ser vivida. Por que ela era discriminada? Porque ela vivia, e tinha uma vida que, na época, era chamada de libertina. Ela era uma pessoa pura, sabe o que é uma pessoa pura? A pessoa que não tem satisfação a dar a ninguém, ela era... não sei como classificaria Carmélia hoje, sei lá, não sei”. Álvaro relatou, ainda, que Marien Calixte lhe contou um episódio no qual Carmélia chegou para ele e disse: “A primavera chegou uma semana antes em Vitória, está na Praça Costa Pereira, em uma flor que só eu vi”. A partir dessa confidência, Calixte passou a chamá-la de “a mulher que descobriu a primavera”.
(Renata Bomfim. Trecho da obra Carmélia Maria de Souza, desesperada e lírica).