20/08/2025
A alegria de inventar histórias reunindo cenas da cidade (Renata Bomfim)
11/08/2025
CARMÉLIA MARIA DE SOUZA: DESESPERADA E LÍRICA (Renata Bomfim)
“Nunca foi tão preciso dar amor e amar. E nunca foi tão difícil fazer com que os homens acreditem nisso” (Carmélia Maria de Souza).
Carmélia Maria de Souza fez da crônica um espaço fértil para a produção literária. A “Cronista do povo”, como ela se definia e gostava de ser referenciada, foi uma personae dramatis, e criou performances que lhe permitiram sondar a própria identidade e se desdobrar em Félia, Magnólia Cardin, Magnolérrima. Reinaldo Santos Neves declarou ser difícil, talvez impossível definir Carmélia, mas que ela foi, certamente, “alguém que abriu caminhos – principalmente para as mulheres de Vitória”, e isso, “sem lágrimas nem dor. A não ser para ela mesma”. Sendo assim, passados cinquenta anos de sua viagem para “as esquinas dos astros”, buscamos o seu rosto na sua obra e nas palavras daqueles que a conheceram e tiveram a alegria de desfrutar de sua companhia.
Vento Sul deixa evidente o amor de Carmélia pela escrita: “E escrever, senhoras e senhores, ainda é a única coisa que consigo fazer muito bem neste mundo de meu Deus, — modéstia à parte. E isso eu aprendi a fazer assim mesmo, por minha conta e risco, sem que ninguém me ensinasse”. A cronista produziu no que chamou sua “tendinha de trabalho”, — onde “nos respeitam e às nossas ideias” —, o que denominou sua “vida operária, responsável por alguma parte desta engrenagem maravilhosa que é uma oficina de jornal”. A relevância de Carmélia no cenário cultural e jornalístico é imensa, conforme destacou Francisco Aurélio Ribeiro, ela “foi a responsável por popularizar a crônica escrita por mulheres no Espírito Santo”. Amylton de Almeida, em uma reportagem no jornal A Gazeta, declarou que devia a Carmélia “a primeira oportunidade na imprensa, em 1966, quando essa profissão dificultava o ingresso de certas pessoas”. Falamos aqui de um tempo de profundas mudanças no jornalismo local “extremamente conservador”. Marien Calixte, personagem de relevo na história no jornalismo capixaba, relatou que a discriminação fazia com que “pessoas como Amylton de Almeida e Milson Henriques, que eram tidos como homossexuais, até por causa da sua própria fisiologia social, quer dizer, eles eram boêmios, pessoas metidas em teatro, literatura, etc.”, fossem estranhadas nas redações. Calixte destacou, ainda, que “a discriminação se estendia também para o gênero feminino”, e que perguntavam como “esse tipo de gente” havia conquistado espaço profissional.
Carmélia escreveu na crônica “Notícias sem tempo da minha cidade”: “Quem não quiser concordar, que se dane, [...] quem não estiver a fim de sintonizar direitinho com o que se faz aqui, tenha a bondade de não ficar pichando a gente pelas costas não. [...] Acabamos de nascer para esta cidade que é um mundo”. Os anos de 1960 produziram grandes transformações sociais, conforme destacou Francisco Aurélio Ribeiro: “o acirramento da luta feminista com a criação do Women’s Lib, nos EUA, e do Movimento de Libertação das Mulheres, na França, em 1968. Dentre as reivindicações do feminismo estavam: direito ao aborto, contracepção livre e gratuita, igualdade de salários para o mesmo trabalho, defesa e informação das mulheres sobre seus direitos, luta contra a opressão familiar, que limitava o papel da mulher ao de esposa e mãe. No Brasil, o movimento foi cerceado pela ditadura militar, que impôs a censura e a perseguição aos intelectuais e políticos”. Variadas passagens mostram Carmélia se insurgindo contra o provincialismo da ilha e afirmando que, se há nela alguma pretensão, é a de ser “justa, natural e única”, em contraposição aos “enfeitados e esnobadinhos”, o que considerou um “hábito tradicional de muita gente” na ilha de Vitória”. Carmélia não ligava para falatórios, foi uma mulher simples, que valorizou a essência, pouco se importando com as aparências, e é sabido que a autenticidade cobra o seu preço.
Variados tipos de violência ameaçam as mulheres, indiferentes a endereço, raça, cor, classe social, escolaridade, profissão. Entretanto, sabemos também que os impactos dessas violências diferem com relação as suas vítimas, a partir de marcadores sociais como gênero, raça e classe. Carmélia carregou marcadores de diferença significativos, — mulher, negra, pobre e LGBTQIA+. Para Kátia Fialho, a cronista “imprimiu em sua escrita uma “ruidosa” (no melhor dos senti dos) forma de (r)existência. Do lugar de fala que ocupou no mundo tendo um corpo negro, gordo, totalmente fora dos padrões determinados por uma sociedade altamente conservadora – que ela apelidou de TFC (Tradicional Família Capixaba), ela não precisou empunhar e tremular uma bandeira de luta por respeito, pois a sua própria presença no universo do jornalismo, da boemia e da escrita, de forma precursora e altamente irônica, provocativa e ‘subversiva’ a destacavam como uma mulher à frente do seu tempo, que carregava em seu modo tão peculiar de viver a essência da diversidade”.
Carmélia viveu desafiando costumes, ela foi uma das poucas mulheres em Vitória a usar calça comprida e, a esse respeito, a cronista declarou: “Não troco o conforto das minhas calças compridas e surradas por nada deste mundo”. Reinaldo Santos Neves perguntou em “Muito além do Milk Shake”, “Quem foi Carmélia Maria de Souza? O escritor, que conviveu com Carmélia, traz à luz uma imagem de mulher afastada de “joias, adereços, maquiagem”, “com jeito de homem, com mania de usar sempre calça comprida e de viver sempre acompanhada por homens, sendo que, nos seus últimos dias, tinha como companheira dos últimos anos ‘a famosa bengala’ e, pontual, usava um relógio de pulso para não se atrasar nos compromissos. Ambição? Nenhuma”. Carmélia não se deixou definir como “inferior” e caminhou com altivez na contramão do ideário feminino de sua época, respondendo as asperezas da vida com as armas de que dispunha: HUMOR E IRONIA.
A cronista escreveu: “Descobri que sou bárbara, dona de um estilo verdadeiramente universal, preciso urgentemente me mandar para Guanabara, pois Vitória não está à altura de receber minha genialidade, nem por aqui haveria horizontes dignos e devidamente alargados onde eu pudesse caber. A mim me cabe, portanto, dar uma banana para todos vocês e me mandar de mala e cuia para o Rio de Janeiro. Lá eu não terei a menor dificuldade em desbancar o Rubem Braga, nem em botar no maior chinelo o Carlinhos de Oliveira”. Capixabas entenderão!
A cronista conseguiu desvelar de forma irônica os valores da sociedade espírito-santense, desafiando a ideologia dominante e, mesmo que o slogan “Esta ilha é uma delícia”, popularizado por ela, esteja imantado de ironia, a cronista colocou o seu território, — a ilha de Vitória — no centro do [seu] mundo, como um lugar singular e único. A ironia é um recurso narrativo que requer cumplicidade entre o produtor e o destinatário da mensagem, é fácil constatar que entre Carmélia e seus leitores existia esse entendimento, o que mostra que a cronista conseguiu desenvolver um jeito próprio de se comunicar com o povo capixaba. Amylton de Almeida relatou que Carmélia não sobreviveu aos anos 70, mas que a cronista conheceu pela primeira vez o reconhecimento profissional, “trabalhando como redatora anônima na redação do jornal O Diário, depois de ter feito da crônica assinada o seu paraíso pessoal”. Esse relato dá a entender que a cronista experimentou um jeito diferente de se expressar, literariamente, escrevendo no anonimato. A história mostra que, em diferentes épocas, muitas mulheres ocultaram a autoria de seus textos ou escreveram sob a máscara do pseudônimo.
É sabido que a inserção da mulher no campo do discurso foi uma conquista nada fácil. Francisco Aurélio Ribeiro destaca: “esta deve ser vista juntamente com a marginalização a que foram submetidas pela sociedade machista e falocrata até muito recentemente, ao lado dos homossexuais, crianças, idosos e dos étnica e racialmente discriminados: negros, ciganos, curdos, dentre outros”. Os primeiros jornais do Espírito Santo não foram campos elísios para as vozes da alteridade, ao contrário, eles serviram a determinados grupos de homens da elite e albergaram ideologias conservadoras do período colonial, depois, continuaram atuando em prol das novas formas de poder. Francisco Aurélio Ribeiro aponta que, no século XX, houve um “reposicionamento da mulher na sociedade, a discussão do seu papel social, a sua profissionalização”, e destaca o pioneirismo de Haydée Nicolussi (1905- 1970) e Lídia Besouchet (1908-1989) como colunistas, em jornais e revistas da época.
Uma visada histórica mostra que o voto feminino foi constitucionalmente garantido em 1934. O Estado Novo (1937- 1945), estabelecido por Vargas através de um golpe de estado, dificultou muito os avanços da pauta feminista e, especialmente a vida das militantes, foram tempos de repressão. A redemocratização, em 1946, permitiu que às mulheres voltarem a se organizar em coletivos. No Espírito Santo, em 1949, foi fundada a Academia Feminina Espírito-santense de Letras (AFESL). Carmélia demonstrou interesse em ingressar na agremiação, mas a sua entrada não foi vista com bons olhos, possivelmente pela sua vida extemporânea. No ano de 1992, buscando retratar a injustiça, a instituição tornou-a patrona da cadeira de número 30. A primeira ocupante dessa cadeira foi Marzia Figueira (1938-2000), que segundo Ribeiro era “oriunda de família da elite” e teve grande destaque no cenário jornalístico capixaba, atuando por trinta anos. Embora ambas tenham produzido na mesma época e fossem humanistas, a escrita de Carmélia e de Marzia diferiam, pois, Carmélia escrevia ancorada pelos valores da contracultura, e Marzia produzia crônicas mais conservadoras.
Carmélia transitou com determinação nesse cenário jornalístico e literário, levando para o jornal, alguns deles de grande circulação, temas que encontraram ressonância em diferentes grupos, assim, com o passar dos anos, ela se consolidou como uma cronista implicada com a ótica da diferença. O jornalista Álvaro Silva relatou que “até o início da década de 1970, não existia imprensa profissional, eram pessoas que trabalhavam nas redações de jornal depois do expediente, era médico, professor, funcionário público, e quando ele terminava o expediente ia para jornal ganhar mais um dinheirinho. Segundo Silva, Carmélia não tinha formação [acadêmica] como jornalista, tinha formação como gente, ela foi uma intelectual pura, que viveu a vida como ela deveria ser vivida. Por que ela era discriminada? Porque ela vivia, e tinha uma vida que, na época, era chamada de libertina. Ela era uma pessoa pura, sabe o que é uma pessoa pura? A pessoa que não tem satisfação a dar a ninguém, ela era... não sei como classificaria Carmélia hoje, sei lá, não sei”. Álvaro relatou, ainda, que Marien Calixte lhe contou um episódio no qual Carmélia chegou para ele e disse: “A primavera chegou uma semana antes em Vitória, está na Praça Costa Pereira, em uma flor que só eu vi”. A partir dessa confidência, Calixte passou a chamá-la de “a mulher que descobriu a primavera”.
(Renata Bomfim. Trecho da obra Carmélia Maria de Souza, desesperada e lírica).
CINQUENTENÁRIO DO DESAPARECIMENTO DE CARMÉLIA MARIA DE SOUZA (Renata Bomfim)
"Mar Revolto", romance de Erlon José Paschoal.
Mundos possíveis
Rubens, o protagonista, é um homem cosmopolita que escolheu viver no centro urbano de uma ilha do Brasil. Nascido em uma modesta família de origem italiana, em São Paulo, desde jovem sua vocação se manifestou para os campos da cultura e da arte, levando-o a trabalhar como ator e diretor de teatro, a estudar e aprender novos idiomas, traduzir livros, lecionar e viajar.
Hoje, no auge de sua maturidade, ele desfruta de um considerável bem-estar material, namora Sonale, uma mulher igualmente bem vivida, e, amparado na certeza de que ama o suficiente o mundo para assumir sua responsabilidade por ele — tal como sugere Hannah Arendt em seus escritos —, dirige uma organização voltada para a transformação do ser humano e dos espaços em favor da justiça social, do desenvolvimento criativo e da igualdade de direitos.
Todavia, para poder cumprir esse ideal, urge primeiro defender-se de uma ameaça crescente: o retorno do último e mais perigoso fantasma a aterrorizar as malhas do Século XXI: o totalitarismo. Para isso, Rubens programará um ciclo de eventos e debates, viajará para Espanha em busca de apoio de outras instituições, e lá conhecerá Úrsula, uma militante alemã, disposta a mudar para o Brasil em razão da perseguição política sofrida na Europa.
Pronto, está montado o triângulo amoroso. Ou não. Há uma trama muito mais sutil a se formar embaixo dessas águas revoltas. É, aviso de antemão, tudo muito próximo ao que vivemos em nossos dias. No entanto, tratam-se de realidades fora dos realities shows televisivos. E há, talvez, um imenso risco de reviravoltas incontroláveis. Sim, o mesmo a que se submeteram Alfred Döblin, em “Berlin Alexanderplatz”, ou John Steinbeck, em seu “Luta incerta”, por exemplo. Caberá ao leitor julgar por si. Preciso destacar ainda a preciosa habilidade de Erlon em costurar referências literárias e cinematográficas, discussões filosóficas e passagens da História ao seu texto, demonstrando as marcas de uma geração intensamente mergulhada na busca de utopias e na valorização do conhecimento e do capital simbólico de nossa memória.
Lima Trindade
Escritor
04/08/2025
The origin of the disasters, album musical de Floriano Peixoto.
El poeta Floriano Martins (1957) acaba de grabar el álbum El origen de los desastres (ARC Edições, 2025): The origin of the disasters en el original. Insistimos en el título original, ya que el álbum sorprende por dos razones: es una colección de 26 canciones escritas originalmente en inglés y presenta esta nueva faceta de un poeta que ya ha explorado numerosos campos, incluyendo el teatro y las artes visuales. También en el ámbito musical, podemos mencionar sus colaboraciones con los brasileros Mário Montaut, Ana Lee y Cássio Gava, canciones incluidas en los álbumes de estos tres compositores, cuyas letras son de Martins. Lo que tenemos ahora es algo muy diferente, ya que el poeta toma el control de una consola de programación de voz e instrumentos y, con una pionera colaboración declarada con Inteligencia Artificial, crea un universo musical único que, de alguna manera, rinde homenaje al cancionero popular de lengua inglesa. También es curioso que Floriano Martins, autor de todas las letras, creara esta atmósfera fascinante, que las propias notas del álbum, preparadas íntegramente por él, describen en los siguientes términos: Esta es una reunión de cuatro músicos imaginarios que ocurrió únicamente para la grabación de este álbum. Viajeros incansables, se encontraron en varios estudios y escenarios alrededor del mundo. Inicialmente, formaron un cuarteto improvisado que comenzó a tocar en bares que el azar sugería. Gradualmente, recopilaron fragmentos de estas sesiones de improvisación, guardados como un código secreto, un secreto que no revelarían a nadie. Las letras surgieron en los hoteles donde cada uno se alojó. Un día, se reunieron para compartir lo que cada uno había logrado.
Gran parte de las letras revelaban una interpretación de las precarias condiciones del planeta y cómo la humanidad estaba perdiendo su brillo. Luego ajustaron detalles, armonías, timbres, tempos y efectos vocales. Durante estos momentos, también compusieron otras canciones, totalizando 26 asombrosas piezas musicales. El título surgió de uno de ellos, El Origen de los Desastres, escrito por los cuatro a partir de este verso que definió el espíritu del álbum: Nunca hay una perspectiva de grandeza humana / cuando tenemos ante nosotros las líneas ciegas de la tierra. Nació el más secreto de todos los códigos: una veintena de maravillas en las líneas ciegas de la Tierra. Este relato, tan fantasioso como el concepto mismo de autoría que define esta nueva experiencia musical, nos recuerda claramente varias declaraciones del argentino Jorge Luis Borges de que la autoría no es un hecho tan interesante como creemos. Si queremos sentarnos a escuchar este sorprendente álbum, ahora es el momento. Existe, es real, posee una densidad estética, una unidad sorprendente, una poética audaz, como rara vez encontramos en la música popular actual.
28/07/2025
Carmélia Maria de Souza: desesperada e lírica (Renata Bomfim)
Lançamento coletivo em comemoração aos 104 anos da Academia Espírito-santense de Letras.
Lançamento coletivo na Biblioteca pública municipal Adelpho Polícia Monjardim dia 30/7.
Esse projeto é fruto de uma parceria de 40 anos entre a Academia Espírito-santense de Letras e a Prefeitura municipal de Vitória. Eu produzi um estudo critico e uma seleta de crônicas de Carmélia Maria de Souza com o título "Carmélia Maria de Souza, desesperada e lírica". Não percam pois a edição está limitada.
As obras serão distribuídas gratuitamente.
07/07/2025
Cesáreo y yo: Memorias quase póstumas (Pedro Sevylla de Juana)
18/06/2025
O uirapuru canta, mas quem estará disposto a escutá-lo? Carta para irmã Cleusa Carolina Rody Coelho
Marechal Floriano, ES, 19 de fevereiro de 2021.
Querida Irmã Cleusa Carolina Rody,
Que a paz de Deus esteja com a Senhora. Aqui do vale de provas e expiações, onde me encontro, elevo os olhos até o horizonte e vejo uma luz tênue e difusa. O coração entoa uma prece ao altíssimo e uma onda de calor inunda o meu corpo. Estranho amor esse que grita ansioso dentro de mim fazendo vibrar as entranhas. Que contradição ser bruta, ácida e ansiar a brandura e pureza do lírio. Talvez, haja pureza dentro de mim, talvez sejamos todos puros quando nos colocamos sob os cuidados do amor: amor-tempo, Irmã.
Escrevo para que saiba que sempre é lembrada com carinho por aqui, na terrinha, especialmente pela sua amiga próxima no trabalho do bem, a irmã Maria Josefina. A comunidade que leva o seu nome, segue firme e é interessante que o bairro onde ela se encontra se chame Padre José de Anchieta II. Anchieta foi canonizado pelo Vaticano em 2014, e a senhora, em processo de canonização, poderá se tornar a primeira santa capixaba. Interessante, também, a ligação da Senhora e de São José de Anchieta com o Espírito Santo, refiro--me, nesse caso, ao Estado, e às artes. São José de Anchieta fez for- mação em Letras, em Portugal, antes de vir para o Brasil, ele era um conhecedor do teatro de Gil Vicente. Chegando por aqui, tornou-se dramaturgo, gramático e poeta. A Senhora também tinha inclinação para as letras, pois cursou Letras-alemão na Universidade Federal do Espírito Santo e, fluente em espanhol, inglês, francês italiano e alemão, ajudou a muitos, sobretudo, aos estrangeiros, muitos deles imigrantes sem família, totalmente desassistidos. Conversei com o Wanderli e ele disse que os membros da Paróquia estão bem, seguem driblando a crise com fé e trabalho duro. Irmã Cleusa, preciso dizer que uma pandemia terrível assola o mundo neste momento e que aqui no nosso Espírito Santo, assim como em todo Brasil, é grande a dor e o desespero de quem perdeu amigos e familiares. À reboque nesta tragédia sanitária, vem a crise política e social, há desemprego e desesperança. Mas a caridade tem brotado e se fortalecido, e aquele(a) que pode ajudar ampara os irmãos mais necessitados. Sim, o cenário é de crise, a devastação ambiental ameaça biomas inteiros, sob os olhares complacentes e criminosos dos poderosos. As comunidades buscam se fortalecer e fazem frente a esse horror, especialmente as comunidades tradicionais e os índigenas apurinãs que a Senhora tanto amou. Irmã, o ser humano esqueceu que é feito de terra, que é húmus e agride a Mãe Natureza de forma vil e inconsequente, parece que perdeu endereço de si mesmo, ele viola a sua pátria interior, devastando o seu mundo íntimo. É o medo, camuflado sob a máscara do ódio, que cega as pessoas para a verdade: somos interdependentes!
Lembro ainda, na minha memória de artista, do dia em que um grupo de homens desgarrados chegou à Capitania do Espírito Santo, vi nos seus olhos a mesma fome que devorava as entranhas dos colonizadores dos paraísos, onde o tempo não existia. Chegaram alterados, buscando riquezas e interpretaram a nudez do índio da pior maneira, julgaram que eles eram pobres e desprovidos de tudo. Que arrogância, não é, irmã? E esse menosprezo transformou-se em desrespeito e eles passaram a cometer variados tipos de atrocidades e violações. Um salto temporal me traz de volta ao século XXI, parece que foram apenas alguns dias, pois pouco mudou. Falo ao teu espírito-memória, Irmã Cleusa Carolina, como uma amiga muito próxima fala à outra amiga. Busco forças para vencer o destino e me afirmar humanamente, vivendo na poesia. Conhecestes bem a indiferença produtora de marginais e miseráveis da sociedade, é inacreditável que, nessa terra fértil e ensolarada, quase sempre é noite para aquele que passa fome, e que as estrelas ameacem despencar sobre a cabeça dos desvalidos do mundo. A vergonha foi expulsa do seio da sociedade, vive-se como se nada disso acontecesse. Como transformar a revolta em amor-ação? Jesus, o nosso mestre e guia querido, trouxe-nos a lei do amor e pediu que fizéssemos da vida um ato de devoção ao próximo.
Um dia desses tive um sonho. Uma criança
brincava correndo por ruas esburacadas e sem calçamento. A despeito dos buracos, ela sorria exibindo o
seu vestido de flores
amarelas. Assim que acordei,
o primeiro impulso foi pedir a Deus que aquela menininha
nunca deixasse de sorrir e que a violência e o preconceito não a alcançassem.
São tantas meninas e meninos por este Brasil que necessitam de cuidado, de proteção,
pão, lar, amor, são os filhos do calvário. A Senhora
foi acusada de “acobertar trombadinhas”, quando passou a levar para casa várias
crianças que dormiam
nas praças. À noite, dignamente acomodadas, elas tomavam sopa quentinha
e estou certa de que algo dentro delas
se refazia, assim como sinto
algo se refazendo dentro de mim, enquanto teço estas linhas.
Sabe, Irmã Cleusa,
eu amo gatos. Tive 50 gatos quando morei
no morro da Boa Vista.
Na verdade, eu tinha seis gatos, mas a notícia
de que tinha uma “mulher
doida” que amava gatos fez o morro famoso e, literalmente, passou
a chover gatos
no meu quintal. Por vezes, eles jogavam os gatos por cima do muro, noutros momentos, deixavam eles em caixas no portão, e assim foi, até que completei 50
gatos. Eu, que me restabelecia de um acidente automobilístico, nem tinha tempo
de sentir dor e, entre as sessões
de fisioterapia, encontrava um jeito de castrar, alimentar,
fazer a limpeza do ambiente, essa rotina durou
cerca de um ano. Decorrido esse tempo, precisei mudar para um apartamento, mas consegui encaminhar cada um dos gatinhos para a adoção,
ficando com os seis gatos
que tinha originalmente. Lembro dessa história porque quando amamos, por vezes,
somos considerados loucos e nos sobrevêm
responsabilidades que, às vezes, não deveriam ser apenas nossas. A Senhora
amou os irmãos indígenas de uma
forma intensa, ao ponto de envolver-se irremediavelmente com os seus dilemas, muitos deles seculares como a opressão do mais forte sobre o mais fraco. Quando foste para Lábrea,
conhecias o tamanho do desafio, a pressão que os latifundiários exerciam
sobre a floresta e sobre as populações originárias era de um furor assassino.
Mas fostes.
Fecho os olhos e imagino a beleza do pedaço de chão amazônico, único no mundo, com floresta densa, igarapés, lagos. Lutar pelo índígena e pela floresta contra o desmatamento e o extrativismo predatório fizeram da Senhora uma pessoa mal vista por ali. O seu esforço foi contínuo e a sua entrega, até o momento final, foi marcada pela coragem. Sinto, Irmã, um calafrio e o mover das entranhas quando imagino aqueles momentos assombrosos, terríveis, mas sei que nunca estivestes só, o Altíssimo lhe cobria com as suas asas. E hoje compreendo que algumas almas possuem a capacidade de se entregar de forma ilimitada a um ideal e essas almas nos inspiram, então buscamos ser melhores e mais justos: a humanidade é construção e conquista. Bem, voltando aos felinos, antes dos 50 gatos, eu já defendia os animais da temível carrocinha. Quando a carretinha da morte passava pelo bairro, eu dava um jeito para que ela não encontrasse os cães de rua, e quando eram pegos, eu me dirigia à zoonose para resgatá-los e para que não fossem sacrificados. Passados alguns anos, esses cuidados se estenderam para os animais silvestres, e hoje eu e o Luiz cuidamos de muitos animais da floresta, especialmente dos macacos-prego-de-crista e às abelhas Uruçu Capixaba, endêmica e ameaçadas de extinção. Aos gatos e cachorros se juntaram os macacos, as abelhas e pássaros, tatus, jacupembas, lagartos, um mundo de vida e de luz que faz parte da Mata Atlântica. O que faço é nada, uma gotinha no oceano, mas aquece o meu coração essa ação miúda. Não se trata de seres humanos, são animais, mas eles estão sujeitos à opressão semelhante àquela sofrida pelos nossos irmãos indígenas: a perda de seus lares, familiares, da liberdade e, muitas vezes, da própria vida. Eles são retirados do convívio familiar na mata, caçados, mortos, vendidos, explorados e essa violência é silenciosa, pois, para muitos, eles não importam, “são apenas animais”. Mas, para mim, eles são tudo, são os filhos que não gerei. São os meus filhos! É surpreendente a incapacidade humana de lidar com paradoxos e antinomias. É fato que, ainda hoje, matam e morrem pela terra, mas Gaia não pertence a ninguém, ela pertence a todos os seres, vive-se como se a morte não existisse. Acredito que a finitude é o maior segredo da humanidade a ser descoberto. O indivíduo sabe que a morte virá um dia, mas pensa que não virá para ele e, assim, passa a vida construindo castelos para se isolar, cercado de luxo, explora o (des)semelhante, pois julga-se no direito, por acreditar-se esse ser acima da lei da vida, ou seja, não sujeito à morte. Mas esse indivíduo, um dia, descobrirá que os anos passaram e que ele é o mais pobre entre os pobres, pois possui apenas muito dinheiro. Irmã Cleusa, Jesus alertou para isso, ele pediu que não ajuntássemos “tesouros na terra, onde a traça e a ferrugem tudo consomem, e onde os ladrões minam e roubam”. Quando seremos capazes de compartilhar os nossos tesouros de amor e de solidariedade? A Mata Atlântica é um bioma que resiste há mais de cinco séculos à destruição sistematizada e contínua, mas o pouco que resta dele precisa ser preservado, a pressão é muita. Cantam por aqui os sabiás, saíras das mais variadas cores, tucanos e um passarinho especial entre muitos, o meu Trica-ferro. Dizem que ao serem aprisionados, muitos pássaros entram em processo depressivo, é sabido que suas asas atrofiam, acredito que pássaro na gaiola, canta é de desgosto. Durante esses anos, pude observar que os pássaros que chegam para serem soltos na Reserva Natural Reluz levam um tempo para se adaptarem à liberdade, ensaiam pequenos voos e, somente depois de um tempo, entram para mais longe na mata. Deve doer sustentar por muito tempo o voo após anos de paralisação forçada, então, eles passam um tempo experimentando a si mesmos. É lindo ver como eles ficam batendo as asinhas no galho, como fazem os filhotes que estão aprendendo a voar. Nós somos assim também, precisamos abandonar gaiolas como o egoísmo e a ganância e experimentar as asas da liberdade que Deus nos deu. Irmã Cleusa, a Senhora viveu na Amazônia e, pertinho do Rio Purus, os seus olhos se fecharam para esta vida. A Amazônia nos permite vislumbrar o paraíso. Árvores centenárias elevam seus galhos para o céu, como se fossem braços buscando alcançar a eternidade. É milagroso ouvir a melodia que atravessa esse rincão verde- escuro, sentir o perfume das flores mais exclusivas. O uirapuru potente lança o seu grito e não podemos ignorá-lo, o seu grito deve ser o nosso grito! Há 36 anos, a Senhora foi assassinada brutalmente, mas o seu martírio e morte lançam luz sobre a necessidade de que continuemos lutando pela vida, pela democracia, pelo direito de existência do próximo, seja ele humano ou animal. Infelizmente, a desigualdade persiste, muitos irmãos e irmãs se esgueiram pelos becos do craque, vagam como zumbis em busca de uma palavra de amor, de aceitação. Tornamo-nos uma sociedade narcótica e alienada, a percepção da realidade está comprometida e há pessoas imaginando que, com armas, promoverão a paz. Aqui na Ilha, o vazio fez da Ponte um trampolim, e das estradas, corredores da morte.
A Senhora
deixou um legado de amor na Missão da
Prelazia de Lábrea, testemunhamos o poder da simplicidade e de um coração que se entrega
sem esperar receber
nada em troca: pobres, presidiários, ribeirinhos indígenas, os mais vulneráveis e sofridos da sociedade encontraram,
e ainda encontram, forças no seu exemplo de fé.
Um dia era o teu aniversário e pediste a Deus, como presente,
que pudesses se doar ao mundo, que
pudesses “te comprometer com o índio, o mais pobre,
desprezado, explorado”, Deus lhe concedeu a graça desejada, desejos de luz. O pássaro mágico continua cantando, convidando todos e todas
para as bodas
do Cristo Cósmico. A vida verdadeira
se reconhece humanamente falível, mas se fortalece
no coletivo.
Irmã Cleusa, tenho bordado: flores, pássaros, pessoas, besouros, casinhas, rios, acredito que seja possível
reconstruir o mundo por
meio
do bordado. A irmã Maria Josefina também borda, e sinto que, juntas, bordamos
uma saudade incrível da senhora, do seu sorriso e da energia de amor que emanava do seu coração
e contagiava a todos
que estavam ao seu redor. Bordamos
celebrando a vida. Deus permitiu que estivéssemos aqui, nesse momento, pelo seu amor e pela sua misericórdia, e não precisamos fazer mais nada
além de amar. Bem, a senhora soube amar plenamente, mas eu sou, ainda, uma aprendiz.
Daqui onde estou,
vale de provas
e expiações, os meus olhos de
poeta enxergam para além do sofrimento, vejo um horizonte
de paz. Sim, há ódio, miséria
e dor, mas a esperança se renova a cada
dia e lutamos e lutaremos contra o ódio e o egoísmo com as armas do amor: fé, perseverança e
caridade.
Que a paz de Deus esteja com a Senhora, irmã querida.
O meu coração entoa uma prece ao altíssimo, grata pela vida. Amém!
Renata Bomfim
O uirapuru canta, mas quem
estará disposto a escutá-lo? Carta para irmã Cleusa
Carolina Rody Coelho. Texto da poeta e ambientalista capixaba Renata
Bomfim. Originalmente publicado no livro Cartas femininas: por uma escrita afetiva.
ISBN: 978-85- 7772-550-2.